Como primeiro texto do blog, escolhi traduzir um capítulo do livro Bologna: fifty years of children’s books from around the world, uma edição comemorativa pelos cinquenta anos da aclamada Feira de Bolonha, escrito pela acadêmica Junko Yokota em 2013, ou seja, trata-se de um material recente. No texto original, havia exemplos de livros transformados em aplicativos, mas, como não temos os direitos de publicação, optamos por não publicá-los aqui.
Junko Yokota é professora emérita de Leitura e Linguagem na National Louis University (Chicago) e diretora do Center for Teaching through Children’s Books. Trabalha com livros infantis há 25 anos e é coautora de Children’s Books in Children’s Hands, cuja quinta edição foi lançada este ano pela Pearson nos Estados Unidos.
Convido a todos a postarem seus pontos de vista, discordâncias e reflexões nos comentários. Sejam mais que bem-vindos!
Do Impresso ao Digital? Considerações sobre o Futuro do Livro Ilustrado para Crianças
O Mundo Digital dos Livros para Todos
O mundo digital trouxe mudanças para o setor editorial em um ritmo vertiginoso. Em alguns aspectos, a velocidade dessa evolução foi maior que as oportunidades de mudanças ponderadas e fundamentadas à medida que os criadores de livros corriam para se manter à frente do jogo. O surgimento dos e-readers impactou as vendas dos livros impressos, e as vendas de e-books para adultos ultrapassaram as dos impressos nos primeiros anos em que esses dispositivos começaram a estar disponíveis. O mundo editorial mudou significativamente a maneira de se relacionar com a leitura.
A situação dos livros infantis é bem diferente. Em particular, os livros ilustrados em formato digital avançaram mais lentamente em termos de vendas. Por que isso acontece? O que o futuro guarda para esse tipo de livro? E, mais importante ainda, os livros ilustrados devem mesmo tornar-se digitais? Estas são as perguntas abordadas neste artigo.
Por que o Fenômeno do Livro Digital Cresceu Tão Rapidamente?
Acesso
Os e-books podem ser acessados por meio de um computador, um leitor de livros digitais, um tablet ou um smartphone conectado à internet – a qualquer hora e em qualquer lugar. As bibliotecas públicas de alguns países já fazem empréstimos de e-books. As bibliotecas escolares e as bibliotecas públicas que atendem aos jovens têm serviços de assinatura que permitem o acesso a um enorme número de e-books. No mundo dos livros impressos, as bibliotecas jamais poderiam ter essa grande quantidade de livros que tais serviços oferecem e, mais ainda, não poderiam pagar por eles, não coneguiriam fazer seu gerenciamento e muito menos ter espaço nas prateleiras para eles.
Conveniência
Os e-books podem ser lido de muitas maneiras – leitores de livros digitais, tablets, smartphones, computadores etc. –, e eles podem, de maneira eficiente, sincronizar a leitura dos conteúdos em vários dispositivos. As pessoas podem começam a ler um livro digital enquanto esperam na fila do mercado, em seus smartphones ou em um leitor de livros digitais, também chamados de e-readers. Depois, elas podem continuar a leitura em seus computadores ou tablets. Se o leitor utilizar a mesma conta, o livro permanece perfeitamente sincronizado em todos os dispositivos.
Preço
O preço médio de um e-book ou aplicativo é significativamente menor do que o de um livro físico. Existe uma meta de acesso equitativo a um preço justo, mas esse preço ainda não foi ser determinado.
É difícil argumentar contra a leitura digital, tendo em vista que ela é mais acessível e conveniente. Ainda mais quando se trata de livros infantis, pois os mesmos pais que leem livros digitais muitas vezes preferem ler livros impressos para os seus filhos, como citado no artigo do New York Times intitulado For Their Children, Many E-Book Fans Insist on Paper (Para Seus Filhos, Muitos Fãs de E-Books Insistem no Papel). De acordo com um relatório do Digital Book World (For Reading and Learning, Kids Prefer E-Books to Print Book) [Para Ler e Aprender, as Crianças Preferem os E-Books aos Livros Impressos], no entanto, as crianças preferem os e-books às versões impressas. Minha perspectiva é de que precisamos de um futuro equilibrado, como citado no artigo da Publisher’s Weekly: Children’s Books Must Exist in Digital and Print (Os Livros Infantis Devem Existir em Versões Impressa e Digital).
Livros Digitais para Crianças: Direções Promissoras
Um tipo de livro infantil com maior potencial são aqueles de referência. É difícil manter os títulos de não ficção atualizados, mas aplicativos e formatos digitais, uma vez carregados, podem ser facilmente atualizados com frequência. No mundo adulto, grandes enciclopédias e dicionários de renome estão deixando de ser impressos e caminhando em direção a um mundo totalmente digital. No entanto, quando se trata de livros ilustrados, essa necessidade premente de torná-los digitais não existe.
O Mundo Digital e os Livros Ilustrados: Potenciais e Armadilhas
Considerando que as bibliotecas eram o principal mercado para os livros ilustrados impressos, os pais e o mercado doméstico agora são o foco para fazer o marketing de aplicativos e versões digitais dos livros ilustrados. Os desenvolvedores de livros infantis ilustrados digitais e aplicativos também são diferentes dos editores de livros impressos. Mais pessoas familiarizadas com a tecnologia e com o que ela pode proporciona estão liderando os novos formatos de livros, e a experiência dessas pessoas está na tecnicalidade de como criar recursos para materiais digitalizados. Portanto, por essa razão, a percepção das histórias e de como contá-las costuma diferir entre os dois grupos, e o que cada um deles produz em termos de livro ilustrado também acaba sendo conceitualmente diferente.
Atualmente, existe um debate entre aqueles que querem digitalizar o máximo de conteúdo o mais rápido possível e aqueles que não veem valor na digitalização de livros para crianças, já que o livro é considerado um objeto melhor. Em algum lugar no meio de tudo isso, está a perspectiva da maioria das pessoas. O que precisa ser realmente considerado é a tomada de decisão equilibrada com base em fatores concretos: público, objetivo, entrega. Quem é o público-alvo e quais são suas necessidades? Qual é o propósito do livro? E qual seria a melhor maneira de entregar esse conteúdo para um público específico?
Meu trabalho se concentra na comparação entre livros ilustrados bem projetados e seus homólogos digitais. O que se segue a partir de agora é uma comparação que pode servir de exemplo de como as histórias são contadas em um livro ilustrado impresso e em um livro infantil digital.
Para começar, o rico legado de livros para crianças deve ser levado em conta. Desde seus tempos remotos, com a narração oral, compartilhar histórias com crianças tem sido uma forma de arte. Gerações de crianças cresceram ouvindo histórias contadas pelos adultos. Após o advento da imprensa, vieram os livros ilustrados em papel. A história do desenvolvimento dos livros ilustrados é um campo muito bem pesquisado (por exemplo, por Nikolajeva e Scott, 2001), e devemos muito àqueles que têm trabalhado em pesquisas sobre esse assunto e continuam a melhorar as experiências com livros ilustrados para as crianças de hoje. Sem dúvida, o livro ilustrado tal como o conhecemos hoje é uma forma de arte.
Design do Livro
Um livro ilustrado bem concebido e que tem sido repetidamente considerado padrão é Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak. Ele funciona tão perfeitamente que os leitores não suspeitam de que cada aspecto foi propositadamente concebido a fim de maximizar a experiência do livro ilustrado para o leitor. A capa é uma obra de arte, mas também serve como um veículo para convidar os leitores à leitura do livro. As guardas prenunciam o cenário da terra imaginária contada no livro e transportam o leitor até o local onde acontece o clímax da história. O ritmo de toda a história é descrito pelas ilustrações e pelo texto, que se complementam sinergicamente ao longo do livro. Até mesmo o papel utilizado na impressão é tão específico que a até mesmo segurar o livro em suas mãos faz parte de toda essa experiência bem calculada. Como é que um livro que oferece à criança leitora uma experiência tão singular deve ser adaptado para o mundo digital? Ou talvez a pergunta correta seja: ele deve ser adaptado?
Tamanho e Forma
Livros ilustrados impressos são projetados levando-se em consideração que seu tamanho e sua forma impactam a experiência geral de leitura do livro. Por exemplo, o livro The Man Who Walked Between the Towers, ganhador do prêmio Caldecott, foi concebido como um livro alto e fino, que simula o format dos arranha-céus.
No entanto, quando o protagonista da história caminha entre as torres do livro, Gerstein usa um recurso visual para criar múltiplos cenários agrupados com o objetivo de sugerir que a ação da história está acontecendo em um ritmo mais rápido, a fim tirar proveito do tamanho relativo das páginas e também para criar uma sensação de movimento horizontal. No clímax da história, quando Philippe Petit está realmente caminhando sobre o fio, as ilustrações exigem que o livro seja virado de lado. Outros exemplos: Beatrix Potter queria que seus livros fossem diminutos porque “mãos pequenas pedem livros pequenos”, e as histórias de Peter Rabbit (Pedro, o Coelho) exemplificam esse sentimento. Em The Story of the Little Mole, de Werner Holzworth e Wolf Erlbruch, um bando de toupeiras tenta descobrir quem deixou cair uma coisa marrom muito suspeita na cabeça delas. Como essa é uma história que descreve uma “jornada”, o formato em paisagem do livro é dobrado aberto e as páginas são viradas.
Impactos na Alteração do Design
Quando os livros projetados para serem impressos caminham em direção ao mundo digital, eles são adaptados para um formato no qual não foram criados. A mais antiga geração de e-books consistiu em transformações digitais de livros ilustrados já publicados em sua forma impressa. Na maioria das vezes, eles foram digitalizados ou houve um movimento semelhante ao dos filmes, ou seja, adicionou-se um áudio, e a arte foi colocada no formato padrão do leitor de e-book. As capas foram, por vezes, substituídas por um modelo para representar a marca da empresa digital. A história permaneceu a mesma, e a arte original serviu como base, mas o design do livro foi comprometido e, por conseguinte, toda a experiência de leitura da criança foi alterada. Em essência, os criadores desses novos formatos acharam que poderiam pegar um título idealizado para ser exibido no meio impresso (como um livro ilustrado clássico de 32 páginas) e tornaram sua própria finalidade primária, além de criarem uma nova versão em que coubesse essa necessidade (cf. http://www.slideshare.net/mikeyiz/the-man-who-walkedbetween-the-towers-2282654).
Ao comparar as versões digital e impressa atuais de livros ilustrados e considerando o que funciona bem em cada versão, as perguntas a seguir guiaram minha análise dos formatos digitais:
1) O estilo de narrativa visual é apropriado para o formato?
2) Quais efeitos os recursos adicionais de voz e movimento têm sobre a experiência de leitura?
3) Quais qualidades os recursos interativos adicionam a essa experiência? Existem recursos que interrompem a compreensão do leitor?
Motivação e Engajamento
Alega-se que aplicativos para contar histórias são “motivadores e envolventes” para as crianças. Muitas vezes, isso é verdade. Os aplicativos de alta qualidade continuam com a intenção inicial da contação de histórias, incluindo recursos que a impulsionam e melhoram a experiência de leitura. Alguns até apresentam um botão que altera instantaneamente o idioma em que a história é narrada. Entretanto, há também muitas características que são problemáticas, pois eles podem, por exemplo, interromper a narrativa e distrair a atenção da criança, prejudicando a compreensão da história.
Alguns aplicativos confiam na “marca” para ajudar a vender o produto. Quando os pais veem escrito “Dr. Seuss” no aplicativo, eles se lembram de sua própria infância, então ocorre uma nostalgia e eles se conectam com o argumento de vendas da aprendizagem da leitura. No entanto, os aplicativos induzem ao erro quando se anuncia que eles “ensinam a ler”. Ao analisar essa questão um pouco mais de perto, percebemos uma incompatibilidade entre o que se pretende e o motivo pelo qual o livro digital foi projetado. Por exemplo, se a criança clicar em uma imagem, aparece uma palavra escrita. Mas isso, quando feito de forma inconsistente, provoca uma certa confusão. Às vezes, aparecem substantivos e, em outros momentos, frases inteiras que podem ou não coincidir com a ilustração que está aparecendo na tela. O que faz os livros de Dr. Seuss venderem bem? Eles oferecem experiências divertidas de praticar a leitura das palavras que são fonéticas e palavras irregulares “decodificáveis” pela aplicação de regras de leitura em inglês. Os desenvolvedores de aplicativos devem concentrar-se nesse tipo de oportunidade para melhorar os pontos positivos dos livros em vez de oferecer algo que impede a aprendizagem, não importa quão atraente ou motivador seja clicar em palavras e ver coisas acontecendo.
Ao fazer transições do impresso para o digital, há duas questões que precisamos ter em mente:
1) Que experiências o mundo digital pode oferecer e que o livro impresso não consegue dar conta?
2) O que o mundo dos livros impressos pode continuar a oferecer e que pode apresentar limitações nas experiências digitais?
Com essas duas perguntas, podemos pensar o que acontecerá no futuro. Embora não possamos fazer previsões certeiras, podemos nos preocupar com o que é melhor para as crianças hoje. Em última análise, livros em formato impresso contiuarão a ter seu lugar, assim como as narrativas orais têm seu papel até hoje (mesmo com todas as narrativas digitais que existem atualmente!). No entanto, à medida que aumentam as maneiras de se oferecer histórias para as crianças, devemos fazer escolhas muito cuidadosas para dar-lhes o melhor que podemos criar.
Referências
- Gerstein, The Man Who Walked Between the Towers, Roaring Brook, New York, 2003.
- Greenfield, For Reading and Learning, Kids Prefer E-Books to Print Books, in Digital Book World, January 9, 2012. http:// www.digitalbookworld.com/2012/for-reading-and-learningkids-prefer-e-books-to-print-books/.
- Habaash, TOC 2012: Children’s Books Must Exist in Digital and Print, in Publisher’s Weekly, February 14, 2012, http://www.publishersweekly.com/pw/by-topic/childrens/ childrens-industry-news/article/50631-toc-2012-children-sbooks-must-exist-in-digital-and-print.html.
- Holzwarth, The Story of the Little Mole Who Went in Search of Whodunit, illustrazioni di W. Erlbruch, Abrams, New York, 2002 (originally published in Germany in 1993).
- Nikolajeva, C. Scott, How Picturebooks Work, Routledge, 2001.
- Richtel, J. Bosman, For Their Children, Many E-Book Fans Insist on Paper, in New York Times, November 20, 2011, http:// http://www.nytimes.com/2011/11/21/business/for-their-childrenmany-e-book-readers-insist-on-paper.html?_r=0. M. Sendak, Where the Wild Things Are, Harper, New York, 1963.
Tradução de Danielle Sales, autorizada por Junko Yokota.